Duas narrativas, sustentadas por muitas histórias, se encontram na inventiva escrita de Nilma Lacerda. Suas personagens, meninas-mulheres, têm origens e trajetórias distintas, marcadas por suas condições objetivas de existência, mas partilham da sobrevivência e da resistência na fabulação. O texto poético, de linguagem exigente, convida os leitores a percorrer seus caminhos, que vão além dos eventos narrados, pedindo também atenção e oferecendo fruição nas palavras, na melodia e no ritmo – ora mais lento, ora galopante – que elas propõem.

Em seu tempo de espera dentro do ovo, um pintinho procura captar o que o aguarda do lado de fora, tentando compreender o que ouve: o canto do pai, as palavras da mãe, os barulhos da natureza. Mas sua chegada ao mundo, marcada por gestos iniciais de carinho da mãe e do pai, logo se transforma em aprendizagem e indagação a respeito da vida como ela se mostra, muitas vezes sem sentido para o pintinho. Apenas quando começa a descobrir que o mundo é como um grande ovo que envolve nossas pequenezas, o pintinho começa a compreender que a vida é construída todos os dias, com alegrias e tristezas.

Na aldeia onde o menino Porã vive, a idade de seus membros é contada pelas castanhas de caju que cada um vai acumulando, uma por ano. A temporada da fruta, adorada e esperada por todos, marca também a passagem do tempo. Quando o avô do curumim morre, suas setenta castanhas ficam para o neto, junto com a responsabilidade de liderar sua aldeia, quando alcançasse a vida adulta. Cumprindo seu destino e com os ensinamentos do avô no coração, Porã encontra, nas castanhas, os caminhos, nem sempre pacíficos, para cuidar de seu povo.

Em uma narrativa autobiográfica que celebra os caminhos que a vida ofereceu ao menino que nos conta sua história, somos convidados a acompanhar a saída de uma criança indígena, um curumim, de sua aldeia no Amapá com destino a um colégio interno religioso no interior do Pará. Participamos da longa viagem de barco pelo rio e da aventura em um ônibus na esburacada e enlameada Transamazônica, além das brincadeiras não permitidas pelo colégio – os projetos –, necessárias para suportar a rotina rigorosa de estudos e trabalho na instituição e a saudade da infância livre nas matas onde vivia com a família.