Tempo de depuração
Ensaios e Formação Leitora | 31.10.2024
Última atualização 01.11.2024
Tempo de depuração
Por Adriana Lisboa
Há quase um século, em plena Segunda Guerra, um de nossos poetas maiores compunha “Os ombros suportam o mundo”. Outras são as guerras dos nossos dias, talvez inimagináveis até para quem tocou um “tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil.” O que diria Carlos Drummond de Andrade sobre a dor rascante destes últimos anos? Sobre as guerras mundiais e domésticas, a carestia, a desesperança, os projetos de matança em que se empenham nossos falsos líderes?
Outro Carlos vem, hoje, se debruçar sobre este mundo, amparando-o não com os ombros mas com as mãos. São mãos que “tecem apenas o rude trabalho”, talvez, como em Drummond, mas um trabalho vazado pela ternura e pela delicadeza. Mãos que penduram roupas ao sol, catam feijão, colocam azulejos no banheiro ou na cozinha, que tocam, afagam, escrevem, esculpem. Nas breves narrativas de Nas mãos de Benedita, o escritor e artista plástico curitibano Carlos Dala Stella inventa umas quantas formas de pôr as mãos no caldo do mundo e modificá-lo, ainda que sutilmente.
“Ali ele trabalhava esvaziado do excessivo ímpeto (…), tomado não por um sentimento, nem pela ideia de um sentimento, mas pelo corpo vivo de um mistério”, lemos. Esse “corpo vivo de um mistério” é a luz dessas narrativas que compõem, com as obras visuais que as acompanham, uma urdidura de recortes, colagens e padrões não raro atentos à sutil lógica do sonho: passear pelas páginas de Nas mãos de Benedita é, também, tocar essa outra margem da vida, menos densa e figurativa. Tudo debruado por rostos, letras, grafismos e, claro, mãos – às vezes, inclusive, foragidas do corpo. Uma obra que zela pelos espaços vazios das narrativas textual e visual, propondo o silêncio como um significante igualmente rico de sentidos.
“Vazios” é, de resto, o poema de abertura de um livro anterior de Dala Stella, A arte muda da fuga: “o vazio está / cheio de possibilidades e não transborda”. Reencontramos, nesse poemário, semelhante assombro diante do mundo, aqui potencializado pelas centelhas de versos breves e uma semântica a um tempo despojada e surpreendente. E se Nas mãos de Benedita vão se elencar tantas vezes o humano e seus ofícios, ainda que em companhia do mundo natural, aqui o não humano comparece em peso: grilos que são agulhas de acupuntura, esquilos que são o coração da árvore saltado para o lado de fora, vaga-lumes, o vento, a chuva, uma laranja que vale por um Mar Amarelo.
Os poemas recolhidos de vários cadernos de ateliê de Dala Stella e reunidos em A arte muda da fuga (foge-se de ou foge-se para?) ocupam-se em preservar, também, o oculto mistério das coisas. Em “Chuvinha fina”: “senhor, obrigado / porque tirais os sentidos / do mundo ao menos / por um segundo”. Ao mesmo tempo, uma mística para além das religiões faz pensar no visionário William Blake ao evocar o grão de areia que, ínfima partícula do universo, ainda assim pode acolher cada dor e alegria existentes.
A narrativa visual que acompanha os poemas, tramada em aberturas, recortes e imagens que se entreveem, também fala de um estilhaçamento de sentidos. O livro é uma melodia em fuga, a elipse (e o eclipse) do sonho. O dedo que aponta para a lua, a pérola que mora fora da concha do poema, como nos ensinaram os mestres japoneses de haikai. Há uma espécie de subtração nesse trabalho, e um despojar-se de armaduras – é somente sem elas que chegamos à grandeza desafetada de um poema como “Espírito santo”: “ela entrou pela janela aberta / bateu com a maciez das penas / e o calor do corpo ágil / em minha cabeça distraída / deu uma volta no ar do quarto / e voltou a sair pela janela // fui tocado pelo espírito santo / de uma sabiá vermelha // os olhos da alma para sempre / arregalados de espanto”. Concodaríamos com Drummond, mas talvez por outros motivos: “Tempo de absoluta depuração”, o nosso. Um pequeno eu que, ao se dar ao outro, transubstancie-se em mundo. Augúrios da inocência, como quis Blake, versejando sobre o Infinito que cabe, não por acaso, na palma da nossa mão.
Adriana Lisboa
É tradutora, ensaísta, escritora e doutora em Literatura Comparada. É autora de O coração à vezes para de bater (2022), Os grandes carnívoros (2024), Sinfonia em branco (2001) e Pequena música (2018).