Bichos da noite

  |  30.10.2024

Última atualização 30.10.2024

Olhos de ver no escuro 

O mundo sob o sol é fácil de se ver. A claridade não exige de ninguém que desperte a sensibilidade do olhar para as coisas, pessoas, paisagens e seres de toda a espécie, porque tudo está descoberto, exposto, “visível”. Abre-se os olhos e simplesmente a vida ampla está lá. Mesmo em um dia de chuva com neblina e trovão, as manhãs são sempre mais claras do que a noite e quanto a isso ninguém discorda. É óbvio e simples observar o que a vida esconde quando a escuridão ainda não cobriu o céu. 

Quando a noite avança, porém, tanto lá fora quanto dentro do quarto, na vigília, antes do sono chegar, ou dentro dos grandes sonos da madrugada, há que se ter olhos de ver para enxergar o que o mundo esconde. Não é tão fácil perceber, sob a camada densa das luzes apagadas, os seres imaginários que habitam a escuridão. E que seres são estes? 

Cada um sabe o que olhos capturam no mais profundo de suas percepções: pode-se imaginar um urso gigante escondido perto da porta (de manhã eram apenas edredons empilhados), uma libélula mágica voando no céu (ou apenas um mosquito ampliado pela fresta da luz do corredor que entrou no quarto escuro por engano), enfim muitas outras coisas que, de noite, ganham novos formatos sob o comando das sombras. 

É o momento de ver o que não se percebe na claridade. Nem todo mundo aceita o convite – é preciso ter coragem para observar o que o mundo esconde. Abrir os poros da imaginação é uma qualidade dos mais sensíveis que precisa ser estimulada por todos. O banal é fácil de ver. Olhe para uma cena iluminada pelo sol e verá com nitidez todos os contornos da paisagem e das pessoas. Não há dúvida quanto ao que se tem diante de si. 

O maior desafio é puxar os fios da imaginação e tirar de uma cena ou de uma imagem mais do que oferecem. Os livros têm este compromisso: aguçar a imaginação do leitor para que sejam capazes de perceber o que existe além da óbvia claridade. 

O que dizer, então, de um livro como Bichos da noite, da talentosa poeta Mariana Ianelli em parceria com o magnífico trabalho do artista Odilon Moraes? A obra é a metáfora de tudo isto: a leitura puxa o tapete das certezas e instiga o olhar a percepções da realidade muito maiores. Quem lê enxerga melhor, literalmente. O “país estranho”, de que fala o poema, são os mundos a serem capturados por uma imaginação ampliada e por uma sensibilidade mais aguçada – “uma galáxia de criaturas brilhantes”; uma “floresta de sombras com passagens secretas, abismos, cavernas”... Consegue ver? 

Todo bom livro trabalha no sentido de criação de mundos paralelos porque, como já dizia um outro poeta, a arte existe porque a vida não basta. É preciso ajudar as crianças e também os adultos, engessados em suas premissas e parafusados em uma realidade massacrante, a aprenderem a olhar nos olhos profundos da escuridão, isto é, ver além do banal e descobrir “os bichos da noite” e tudo o mais que a imaginação é capaz de CRIAR. 

O medo do escuro pode ser visto também como o receio em abrir o entendimento ao que não se pode explicar ou entender. O mistério dos seres viventes nas sombras é o mistério de nossas penumbras. Já conhecemos o calor dos dias claros e tudo o que existe dentro deles, mas ainda não sabemos o que escondemos em nossas escuridões, quais são nossos maiores medos e desafios. Muitas vezes, preferimos fechar os olhos para os “bichos da noite” em vez de enfrentá-los ou dar-lhes comida, afeto e acolhida. 

Descobrir os seres que habitam nossos quartos escuros é um enfrentamento necessário que os livros, e a arte em geral, ajudam a realizar. A poesia nos agiganta. 



Claudia Nina 

É escritora, jornalista, crítica literária e podcaster, com doutorado em Letras pela Universidade de Utrecht, na Holanda, sobre Clarice Lispector.  

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