
Resenha - Herança
Resenhas catálogo | 11.09.2024
Última atualização 11.09.2024
Não é possível ignorar ou menosprezar o passado. Tanto o individual quanto o coletivo, que se realizam no presente de maneira indissociável. Episódios traumáticos de nossa história, que afetam diretamente grupos inteiros, alcançando também quem parece nada ter a ver com temas específicos, se mostram atinentes a todos, especialmente se vistos a distância. Essa é a matéria de Jacques Fux, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2013, com Herança.
“A minha geração — a das netas do Holocausto — aprendeu a duras penas a falar sobre o medo. Sim, carregamos a história — os sorrisos e também os bramidos — de cada um dos nossos antepassados. Heróis e fantasmas responsáveis pelo desmesurado mar de amor, zelo e carinho. E também por todo o oceano de preocupação, superproteção e desassossego.
Eu, minha mãe e minha avó transformamos o sofrimento em palavras. Legendamos, nomeamos, demos cor, vida, sentido, forma e razão para nossas aflições, nossos segredos e nossos tantos vazios.
Não sem muitos percalços.”
O livro conta história de uma família em três vozes: a de Sarah K., nascida em Lódz, na Polônia, em 1926; a de Clara K., nascida em São Paulo, em 1949; e a de Lola K., nascida no Recife, em 1984. Três gerações de uma mesma família dividem com os leitores suas experiências com o Nazismo. Lemos o diário de Sarah e partilhamos de sua descoberta do amor, ao mesmo tempo que assistimos ao terror da vida no gueto e ao extermínio em Auschwitz. De Clara, filha de Sarah, sabemos por meio de trechos de suas sessões de psicanálise. Lola, neta de Sarah, filha de Clara — e mãe de Luiza –, escreve notas do que aos poucos descobre sobre sua família, tomando a própria vida por esse prisma. Nas três mulheres estão as marcas indeléveis dos campos de concentração, que reverberam intensamente em suas histórias. As perdas de Sarah K., ainda na Polônia, são objeto de melancolia e luto para Clara e Lola, décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, assim como os horrores desta seguem impregnados em nossa humanidade.
Elaborar o passado é uma exigência de nosso tempo, e as artes se oferecem como potente instrumento para a realização dessa tarefa sempre em marcha. Para além de suas existências concretas, Sarah, Clara e Lola encarnam as dores e angústias de muitas pessoas, oferecem suas histórias para que todos nós, judeus ou não, contemos e escutemos as nossas. Como um mosaico, Herança nos convida a juntar cacos e a construir, não sem fissuras, nossa historicidade.
Fabíola Farias
Graduada em Letras, mestre e doutora em Ciência da Informação pela UFMG, com pós-doutorado em Educação pela UFOPA. Dedica-se à pesquisa e a projetos sobre leitura, formação de leitores, bibliotecas, livros para crianças e jovens e valorização da cultura da infância.