Toda cicatriz desaparece
Resenhas catálogo | 26.09.2024
Última atualização 31.10.2024
Narrar a vida, feita de memórias, esquecimentos e invenções. Essa parece ser a função da literatura, tanto para quem escreve quanto para quem lê. É isso que, mesmo sem saber, buscamos ao abrir as páginas de um livro: o outro e suas experiências, que, por mais distintas que sejam das nossas, ecoam quem somos coletivamente. Nessa tarefa, alguns gêneros se interpenetram, unindo características de um e outro na busca pela veia mais potente para contar as histórias que desejamos partilhar. São assim os contos-crônicas de Rogério Pereira, escolhidos por Luiz Ruffato, que fazem Toda cicatriz desaparece.
O livro é um elogio à infância e à escrita. A primeira é oferecida aos leitores na contramão do senso comum sobre a indiscutível felicidade das crianças, idealizadas, ingênuas e descoladas de suas existências concretas. A segunda, a escrita, faz das memórias matéria literária, que torna as misérias de um menino pobre e sua família um pouco também nossas, que as lemos. O pai bêbado e violento, a mãe doente e amargurada, a irmã morta muito jovem, a pobreza, a lembrança das avós e de antigos colegas de escola compõem as histórias (Contos? Crônicas?) contadas e recontadas pelo adulto impregnado pelo menino magrela e daltônico. Uma bola de plástico, um guarda-chuva velho e banhos em chuveiros improvisados com latas de tinta, assim como outros elementos recorrentes nas narrativas, estruturam uma infância indelével na vida do escritor adulto.
“Tínhamos apelidos ridículos: Pito e Gélo. Não éramos amigos. Éramos primos. Nossas mães, irmãs. Entre nossas casas, o corredor de piso bruto — um amontoado de barracos mal-ajambrados, desbeiçados em direção à barroca ameaçadora. Saíramos da roça para um cortiço de fazer inveja a Aluísio Azevedo. Ninguém ali sabia quem era Aluísio Azevedo. Pito tinha os dentes pra frente. Um dentuço risonho com orelhas de abano. Carregou uma chupeta entre os lábios até quase dez anos de idade. A caminho da escola, a escondia no matagal. Na volta, a recuperava. Era um obstinado. Eu suportava na carne a magreza de uma taquara. Fazíamos cabana no mato. Jogávamos futebol na rua de pedras. Éramos mestres em matar passarinhos com bodoques de mira afiada. Uma pedrada e uma pomba gorda na panela. Assassinos infantis sem piedade, dó ou remorso. Queríamos ser jogadores de futebol. Não deu nada certo.”
O conjunto pode ser lido como narrativa única, com fragmentos e repetições que juntos compõem um mosaico. Como destaca o escritor Luiz Ruffato, organizador do livro, as histórias contadas em Toda cicatriz desaparece são as de muitos brasileiros, pois são feitas de elementos de vidas comuns que, na criação do autor, se tornam um livro, não apenas um objeto, mas uma experiência cultural que nos ajuda a entender quem somos e como vivemos.
Fabíola Farias
Graduada em Letras, mestre e doutora em Ciência da Informação pela UFMG, com pós-doutorado em Educação pela UFOPA. Dedica-se à pesquisa e a projetos sobre leitura, formação de leitores, bibliotecas, livros para crianças e jovens e valorização da cultura da infância.