
Resenha - O coração às vezes para de bater
| 11.09.2024
Última atualização 11.09.2024
Falar sobre sentimentos não é tarefa simples, especialmente porque isso implica a apresentação, ainda que subliminar, de quem somos e do que pensamos. Algumas formas que podem até ser consideradas antigas e ultrapassadas se mostram mais generosas nessas situações. É o caso, por exemplo, das cartas, presentes em obras literárias como gênero propício para tratar de situações delicadas, que envolvem uma exposição afetiva do sujeito que as escreve. Ainda que não tenham a certeza de que serão lidas ou mesmo a intenção de que isso aconteça, muitos se entregam a essa escrita, que responde mais a uma demanda de quem escreve que à de seu leitor possível ou ideal.
“Eu não queria pensar. Queria ouvir o ruído baixo das rodas sobre a pista da Lagoa. É uma ciclovia e uma pista de corrida, mas àquela hora não havia ninguém correndo ou andando de bicicleta. Eu tinha liberdade para o skate, sem ter que me desviar das outras pessoas. Queria que o vento frio do inverno me doesse no rosto, nos olhos, dentro dos pulmões.
Queria que me doesse no coração, esse músculo que às vezes para de bater. Que doesse mesmo, no fundo, para que eu sentisse que estava vivo, mesmo que estar vivo fosse um absurdo, um contrassenso. Será que às vezes é preciso que a vida nos doa no fundo mais fundo do corpo para que fique alguma certeza dela?”
O coração às vezes para de bater é uma novela em forma de carta, escrita pelo narrador a um amigo que é atropelado na rua enquanto andavam de skate juntos. Esse narrador é um adolescente que vive no Rio de Janeiro com a família desde a infância e, numa manhã de sábado, conhece uma menina na praia: Paloma, por quem sente um carinho especial. Enquanto ele tem uma relação distante com os pais e a irmã, na casa da amiga assiste a uma convivência familiar amorosa e amigável. A amizade, a descoberta do amor, os conflitos familiares, as perdas e a angústia de crescer são os elementos da envolvente e sensível história contada por Adriana Lisboa.
Em situações distintas, o coração do narrador, autor da carta, para de bater: medo, vergonha, emoção, susto, tristeza… Bonito, o texto constrói personagens de quem logo nos sentimos próximos, com quem dividimos sentimentos e expectativas. Não se trata daquela identificação imediata, que faz com que o leitor veja na história lida apenas a sua própria. O que temos em O coração às vezes para de bater é uma experiência de empatia, de companheirismo, que faz com que nos sintamos parte de algo maior, de um mundo que precisa ser partilhado.
Fabíola Farias
Graduada em Letras, mestre e doutora em Ciência da Informação pela UFMG, com pós-doutorado em Educação pela UFOPA. Dedica-se à pesquisa e a projetos sobre leitura, formação de leitores, bibliotecas, livros para crianças e jovens e valorização da cultura da infância.