Formação leitora Palavras-chave: Marta Morais da Costa, formação leitora, leitura, literatura.

Ensaios e Formação Leitora  |  26.09.2024

Última atualização 26.09.2024

Censura, ética e palavras neutras

 

Por Marta Morais da Costa

 

Gosto muito das pessoas práticas que querem tudo às claras, tudo que possa estar servindo para alguma coisa. Como professora de literatura – arte considerada por muitos, erroneamente, como puro devaneio e imaginação – me sinto provocada todas as vezes que ouço a pergunta prática: “Me diga, para que serve a literatura?”. Embora ela pareça um tanto ofensiva e contundente, considero-a melhor que a maliciosa afirmação – aparentemente simpática – “Ah, a literatura! É muita imaginação para meu modo de ver a vida: sou prático e não posso perder tempo”. Preconceitos à parte, ensaio uma saída diplomática e verdadeira: “Sabe que a literatura tem a realidade prática e cotidiana como ponto de partida e objetivo de chegada?”. E se tiver o tempo e o respeito do interlocutor, acrescento: “Nem mesmo a mais obstinada imaginação deixou de criar personagens com características humanas (físicas ou psicológicas) ou criou situações ou conflitos fora da esfera da vida humana”.

 

Neste momento vou pedir ajuda a Eduardo Galeano, escritor maravilhoso, que em uma palestra em 1992, em uma reunião da Associação Americana de Livreiros dos EUA, ousou – como sempre – se posicionar a respeito do lugar da literatura na sociedade humana.

 

“Dúvidas, dúvidas. (...) Eu me pergunto: será que a literatura ainda tem destino neste mundo onde todas as crianças de cinco anos são engenheiros eletrônicos? E gostaria de me responder: talvez o modo de vida de nosso tempo não seja exatamente bom para as pessoas nem para a natureza, mas sem dúvida [é] muito bom para a indústria farmacêutica. Por que não poderia ser modo arriscado nem sentir com loucura; que evite os sonhos perigosos e sobretudo a tentação de vivê-los.

Só tem uma coisa: essa é exatamente a literatura que não sou capaz de escrever ou ler. Condenado à impotência, não posso escrever palavras neutras. E, ainda que faça o possível, não consigo deixar de acreditar: estes tempos de resignação, de desprestígio da paixão humana e de arrependimento do humano compromisso são nosso desafio, mas não nosso destino.”

 

Penso que não podemos – e não queremos – usar “palavras neutras”. É nosso compromisso – mais do que profissional, o compromisso é nossa crença no poder da educação, da palavra e do exemplo e nos oferece oportunidades de favorecer o acesso ao conhecimento, à arte e à convivência humana sem preconceitos. Um rápido olhar sobre a sociedade brasileira confirma a complexa variedade de raças, culturas, arte e costumes. Não há um brasileiro típico: há brasileiros. Diversos, plurais, múltiplos. Assim é o modo como se expressam, assim é sua expressão na literatura. Qualquer narrativa que ignore a diversidade de falares e de comportamentos não será a literatura de nosso tempo. Será uma expressão neutra, e, portanto, irreal.

 

A literatura é a arte da palavra e se caracteriza pela visão ampla, humana e democrática. O “humano compromisso” é sua bandeira mais valiosa. E, para atender a esse compromisso, a literatura desafia proibições e vetos. Imaginemos que as histórias tivessem sempre os mesmos personagens – por exemplo, só brancos, só negros ou só amarelos ou verdes, azuis e vermelhos. Imaginemos que as situações somente pudessem ser desenvolvidas em casas unifamiliares ou em paisagens do campo. Vamos um pouco além: as histórias para crianças e jovens deveriam ser sempre educacionais por exemplo, ensinar geografia, história, matemática, redação, bons comportamentos. Imaginemos ainda que Pinóquio e Alice não poderiam sair de perto de seus pais e irmãos para não viverem aventuras perigosas! Penso que as histórias seriam tão enfadonhas, tão repetitivas, tão previsíveis que o número de leitores seria ainda mais raquítico do que é hoje. Onde estaria a brincadeira, a invenção, a novidade musical e sonora, a imagem que desperta a beleza, a ideia que convida a pensar e a sentir? A monotonia e a mesmice ajudariam a matar possíveis leitores já nas fraldas infantis.

 

A literatura ajuda-nos a pensar, a ver as contradições e a pluralidade das vidas humanas, a encarar os preconceitos e radicalismos com uma postura mais generosa, mais aberta. A literatura tem condições efetivas de promover o entendimento do leitor consigo mesmo e com as pessoas com as quais convive. Por estas razões, o magistério e a literatura podem associar-se às palavras liberdade e conhecimento. E contribuir para uma sociedade mais fraterna e menos preconceituosa.

 

 

Marta Morais da Costa

É doutora em Literatura Brasileira, professora, escritora e pesquisadora sobre formação leitora, formação de professores, metodologia de ensino de literatura, ficção contemporânea e leitura de múltiplas linguagens.

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